(Portal Acrítica)
Foi
em um presídio federal de segurança máxima que dois dos maiores
traficantes do Amazonas decidiram fundar a ‘Família do Norte’
Operação La Muralla começou com a apreensão de R$ 200 mil em uma lancha
(Arte: Celso Paula)
A
maior operação da Polícia Federal já realizada contra a facção Família
do Norte (FDN) tem como um dos objetos a transferência das 17 principais
lideranças da organização criminosa para presídios federais de
segurança máxima. Ironicamente, o mesmo lugar onde surgiu a ideia de
unir grupos traficantes rivais e criar o que viria a ser a maior facção
criminosa do Amazonas, com “braços” no Rio de Janeiro, Ceará, Rio Grande
do Norte, Roraima, Peru, Bolívia, Venezuela e Colômbia, e responsável
pelo “quase” monopólio de uma das maiores rotas de tráfico de cocaína do
mundo: a “Solimões” - trajeto entre a tríplice fronteira (Brasil, Peru e
Colômbia) e Manaus.
É
que, de acordo com as investigações da Polícia Federal, foi após uma
temporada em presídios federais de segurança máxima que José Roberto
Fernandes Barbosa, o “Zé Roberto da Compensa” - que controlava o tráfico
no bairro da Zona Oeste -, e Gelson Carnaúba, o “G” - que dominava
parte da Zona Sul de Manaus -, decidiram trocar a concorrência por uma
aliança.
Da
união deles nasceu a Família do Norte, após os dois terem contato com
criminosos de organizações que atuam em outros Estados, como o Comando
Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, e o Primeiro Comando da Capital (PCC),
de São Paulo, aponta a PF. “Após passarem uma temporada cumprindo pena
em presídios federais, retornaram para Manaus determinados (ou
orientados) a se estruturarem como uma facção criminosa, nos moldes do
PCC e do CV”, revela o relatório da operação.

Segundo
a PF, com o tempo e a “experiência” de Carnaúba e Zé Roberto, a FDN
desenvolveu um “modus operandi” próprio para transporte de grandes
cargas de drogas, que inclui a utilização de embarcações, armas de
grosso calibre e adoção de medidas de contra inteligência.
‘Diferencial’
A
estrutura da facção, que possui mais de 200 mil criminosos cadastrados
em um sistema informatizado e com senhas - que reúne, ainda, o
monitoramento de todas as ruas dos bairros onde a FDN atua - chamou a
atenção da Polícia Federal, que destaca a “não submissão” da facção
amazonense ao CV ou ao PCC, como acontece em outros Estados.
Esse
“diferencial”, inclusive, é motivo de “orgulho” para Zé Roberto, como
mostram interceptações de conversas dele com o traficante João Pinto
Carioca, o “João Branco”, feitas pela PF durante as investigações. “Qual
é outra facção do Brasil depois do PCC e CV? Todos que são bandido
conhece a FDN. E respeita. Porque outras facções de outros estados
dependem ‘dos caras’. E nós não, nós corremos atrás. E aqui no Estado
tudo é FDN. Outros estados é PCC e CV, aqui é só nós”, diz Zé Roberto,
que ainda se vangloria do fato de, segundo ele, a FDN ser a única facção
criminosa a prestar apoio jurídico, inclusive, a traficantes presos em
presídios federais. “Onde que tu vê outra facção, sem ser CV e PCC, que
ajuda nas federais? Que contratou nove advogados pra dar apoio nas
cadeias? Aqui mesmo, a FDN, mano”, finaliza.
Aliança firmada em Campo Grande
Foi
também em um presídio federal, desta vez o de Campo Grande, no Mato
Grosso do Sul, que a Família do Norte (FDN) firmou uma aliança com a
facção criminosa Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, ampliando
suas ações na região Sudeste do País.
Segundo
o relatório da Polícia Federal (PF), o acordo entre as duas facções se
deu por meio de Gelson Carnaúba e “Caçula”, um dos líderes da facção
carioca que, assim como o traficante amazonense, estava preso no local.
O
episódio foi, inclusive, relatado por Zé Roberto a Alan Cartimário, o
“Nanico”, por mensagem de texto, no dia 3 de outubro deste ano. “Foi
fechada uma aliança em Campo Grande. Quando Gelson (Carnaúba) estava
lá”, escreveu Zé Roberto.
Ainda
de acordo com a PF, as mensagens interceptadas evidenciam que a FDN
possui uma forte ligação com o CV e uma espécie de rixa com os membros
do PCC, o que teria motivado, inclusive, o planejamento do assassinato
de todos os membros da organização criminosa paulista que estejam presos
em Manaus. E, segundo a PF, pelo menos três das principais lideranças
do PCC foram assassinadas degoladas ou enforcadas, dentro dos presídios,
por integrantes da FDN.
Análise: David Spencer, Sociólogo
“No
estado do Amazonas, a ascensão da Família do Norte, organização
criminosa associada ao tráfico de drogas e a várias outras atividades
clandestinas e ilícitas, e cujas atividades se baseiam no uso da
violência e da intimidação, bem como no poder econômico de seus agentes,
está associada à incapacidade do Estado em colocar em prática uma
política pública de segurança que tenha como foco a desarticulação das
organizações criminosas e suas lideranças. Esta política requer
necessariamente o fortalecimento da inteligência policial e
investigativa, bem como a viabilização de um pacto político e
interinstitucional entre as polícias, os gestores dos presídios, o
ministério público e o poder judiciário a fim de atingir com eficácia e
precisão a estrutura organizacional e econômica desta organização
criminosa. A intervenção da polícia federal no estado do Amazonas, com
sua expertise, isto é, com sua capacidade técnica, investigativa e de
inteligência, é um grande exemplo do quanto as agências policiais locais
precisam ser fortalecidas enquanto aparelho de Estado responsável pela
ordem pública democrática e proteção social da população amazonense”.
Recrutamento de novos ‘associados’
As
unidades prisionais do Amazonas são o principal reduto de recrutamento
de criminosos para a Família do Norte (FDN), aponta a Polícia Federal.
Relatório da operação La Muralla revela que a “seleção” dos criminosos
começa assim que um detento ingressa no sistema prisional do Estado.
Os
“xerifes” dos presídios, “nomeados” pelo comando da facção, são
responsáveis por fazer uma entrevista com os presos que chegam,
especialmente os que respondem por tráfico. Nessa entrevista, os presos
são obrigados a revelar todos detalhes como para quem trabalham,
fornecedores, distribuidores, destinatários finais e rotas, e obrigados a
se filiar e seguir o estatuto da FDN, fornecendo o entorpecente
exclusivamente para a facção, sob pena de serem “sumariamente
executados”, revela o relatório da PF.
A
outra forma de se associar à FDN era sendo indicado por um dos
conselheiros ao comando. Se aprovado, o novo membro recebe uma senha e
passa a ser subordinado à equipe do conselheiro que o indicou.
Dessa
forma, a FDN conseguiu chegar a 200 mil cadastrados, eliminando os
rivais, a quem Zé Roberto faz ameaças, em uma conversa com João Branco.
“Aqui no Amazonas quem manda é a FDN. Que nós somos o CRIME do estado do
Amazonas”, diz a mensagem.
Amadorismo
Se
a amplitude da FDN impressinou a PF, o amadorismo deles também
facilitou o trabalho policial: não há aparente preocupação com códigos
na comunicação. Prova disso é que, em quatro meses, a PF interceptou
mais de 800 ligações e mensagens trocadas entre as lideranças da FDN.
Banco de dados e financiamento
O
banco de dados da organização criminosa reúne ainda o mapeamento das
ruas e bairros onde ela atua. Era controlado pelo então companheiro de
cela de Zé Roberto, o técnico em informática Rafael Henrique Canuto de
Oliveira, de um computador que ficava dentro do presídio, e pode ser o
equipamento apreendido pela PF na última quinta-feira.
Após
o cadastro dos criminosos no “sistema” da FDN, o novo membro recebe uma
senha, uma espécie de identificação na facção.Com essa senha, o membro
realiza operações de compra e venda de drogas nas áreas comandadas pela
FDN. Ele também tem a obrigação de cumprir as ordens do chefe da equipe a
qual ele pertence e deve contribuir com a “caixinha” da facção,
repassando parte do lucro com a venda das drogas, sempre no dia 10 de
cada mês. Segundo a PF, a “caixinha” arrecada, em média, R$ 100 mil por
mês.
O
dinheiro da “caixinha” era usado, entre outras coisas, para bancar o
núcleo jurídico da facção, que, segundo Zé Roberto, conta com nove
advogados. Seis deles foram presos pela Polícia Federal. Eles são
responsáveis por episódios de corrupção que vão de fraudes a negociatas
com servidores públicos para beneficiar os integrantes da FDN.